quarta-feira, 10 de outubro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (VIII)


(VIII)
Os três dias de caminho correram como num sonho brumoso. Entre os almocreves tudo fez por passar despercebido, viajando e comendo calado, dormindo no canto mais esconso onde ninguém desse por ele.
Umas léguas depois de Penacova, e após longa e custosa subida, lá conseguiu lobrigar o seu destino transitório de Lorvão. Ficou impressionado pela grandiosidade do Mosteiro, pertença da Ordem de Cister desde os tempos do seu avô. À porta esperava um cortejo de freiras encabeçadas pela madre superiora e que era nem mais nem menos que Branca de Portugal, filha de el-rei, mas que já nem respondia por tal nome há vários anos, desde que se havia despedido da vida mundana.
Depois de ajudar a entregar a mercadoria ali destinada, composta sobretudo por lã, mel e alguns alqueires de milho, levaram-no à presença da Abadessa que o olhou de alto a baixo, apreciando a sua compleição e tez tisnada pelo sol, por trás de uns olhos muito azuis.
- Sei quem és e ao que vens. Prepara-te para uma vida diferente de trabalho e sacrifício. Tens de respeitar as matinas, fazer o que te mandarem sem qualquer réplica. Dentro de muros todos estão acima de ti. Nunca o esqueças. Claro que ficarás na ala dos criados e servos. Que respeitarás todos e em especial as damas e monjas a quem só poderás dirigir palavra se antes elas a ti se dirigirem. E ficas a saber que respondes directamente ao Albano, o responsável por toda a serventia. Agora vai...
O seu ar triste e desanimado parecia escurecer ainda mais aquele fim da tarde. Só muito depois e já na sua enxerga pareceu lembrar-se que depois daquele discurso que mais soou a sermão, lhe parecia ter ouvido uns risinhos abafados vindos das noviças do fim da ala que a Abadessa comandava.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (VII)



(VII)
Toda esta desgraça havia acontecido na segunda metade de 1276. Mesmo a protecção do seu padrinho, o Abade, talvez não fosse suficiente para o livrar da ira dos nobres das redondezas. Muito a contra gosto e depois de muita conversa e água benta, pai e padrinho lá o conseguiram convencer a entrar para um mosteiro de Cister como noviço. Alegaram que a Ordem não era das mais rigorosas, que a vida de clérigo era melhor suportada que a do comum da plebe. Que comiam e bebiam bem. Que o trabalho e oração não eram tão pesados como o trabalho de camponês ou ferreiro e tinha muito menos risco do que o de militar, ainda que cavaleiro menor.
Agachado na sua cela sem luz natural, Jaca maldisse diariamente nos meses seguintes a sua vida pedindo a tudo e todos que o seu pesadelo acabasse.
Mas o milagre nunca aconteceu.
Pelo contrário, foi-se resignando, apesar de sonhar com as mulheres, a música e o vinho todas as noites. E depois da resignação veio até o entusiasmo que os seus vinte e poucos anos ainda lhe permitiam, ajudado pela água-pé com que os outros frades o procuravam consolar.
É que pelo reino corria o orgulho enorme de nesses tempos por Sua Santidade, o Papa, ser então português. Pedro Julião ou “Pedro Hispano” era conhecido no reino como médico, matemático e professor. Era também clérigo, como quase todos os letrados. Tinha estudado na Escola do Paço Episcopal de Lisboa e mais tarde sabia-se haver sido professor as Universidades de Paris e Siena, antes de ser nomeado, fazia poucos anos, Arcebispo de Braga. Mas a verdade é que, após um curto cardinalado na cidade italiana de Frascati, todo o reino rejubilava com o novo Papa João XXI, um honrado português. E que bom era, pensava mesmo o rei Afonso, depois de tantos anos em guerra com a Santa Sé, tendo mesmo sido excomungado, o que já havia também acontecido a seu irmão e predecessor, D. Sancho.
- Vês, dizia-lhe o seu padrinho, às vezes ainda há milagres… Quem sabe se um dia não chegas assim longe. Tu, mesmo já não sendo novo para noviço, até tens uma formação sólida e podes ir longe…
- Meu padrinho, vos agradeço essas palavras, mas a minha carne é tão fraca. Acho que nunca iria ser capaz… - lá balbuciou, voltando a ver a dúvida a assaltar-lhe a mente.
- Está decidido. Amanhã segues na caravana e esperas em Lorvão que o superior da Ordem te destine o caminho. Descansa que esta noite, depois das vésperas, escreverei uma carta a recomendar-te e a encaminhar-te. Mas tal nem era preciso porque O que está lá em cima vela por todos nós.
E Jaca, suspirando, lá se conformou com o destino que lhe parecia estar já traçado. E que não era o que ele sempre desejara no seu íntimo nem nunca tinha sequer imaginado.

domingo, 30 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (VI)


(VI)
Certa vez, alçando mais o pé do que a perna deixava, perdeu-se de amores com a filha mais nova da Casa de Ribacôa, a donzela Gertrudes, nova, formosa e loira, que ainda quase não tinha idade para aprender a fiar a sua roca. Mesmo os avisos feitos pelos serviçais da casa e que chegaram aos ouvidos de seu pai por ordem do titular nenhum efeito tiveram.
É que a moça, mesmo recatada, não repelia, bem pelo contrário, as sortidas nocturnas do rapaz.

E certa noite ele não resistiu a invadir o Paço trepando pelo alçado exterior da muralha numa noite sem luar, trajando de negro e apenas com a cítola às costas e a adaga na bainha do cinto. Só que foi detectado mesmo antes de chegar ao balcão da varanda da sua amada. Pelos vistos, dois criados tinham ficado de atalaia acompanhados por um tio bastardo da donzela que na casa servia como despenseiro.
Empurrado desde o cimo da muralha caiu mesmo entre os outros dois, esborrachando o instrumento na cabeça de um deles na queda. Da rápida luta que se seguiu com o despenseiro, pouco ficou a recordar. Apenas que no seu sufoco sacou da adaga e feriu gravemente o seu opositor no esterno após o que se pôs em fuga perseguido pelas tochas e pelo alarido dos cães na confusão que se gerou imediatamente a seguir.

Mesmo assim a deusa Fortuna ainda o acompanhou porque lhe perderam o rasto quando teve de nadar, atravessando o rio. Ninguém que não o tal bastardo o poderia identificar. Mas para seu infortúnio corria à boca larga que era ele que desde há tempos andava a rondar o Paço. E nem era certo que o outro houvesse morrido, o que se veio a confirmar.

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (V)


(V)
O jovem Jaca quando se conseguiu escapulir das tarefas lá de casa tudo fazia para acompanhar os estudantes, fosse noite ou dia. Mesmo quando estes lho recusavam, ele seguia-os pela calada das sombras.

Com os seus quinze anos feitos já conhecia uma série de cantigas, tendo percebido que a maioria delas falava de vinho. Algumas outras eram modificações arrevesadas das Santas Orações que quase sempre gozavam os Frades e a vida que levavam. Outras ainda, mais melosas, falavam ao coração das mulheres. Mas estas eram contadas na língua corrente dos dois lados da raia, segundo lhe explicaram, para que as Donas as compreendessem melhor, fossem elas do povo, da nobreza ou mesmo algumas monjas mais ligadas a questões mais terrenas.
Aprendeu também grande quantidade de galanteios e outras formosas falas que eles soltavam sempre que passavam por moçoila sozinha a caminho da fonte ou do forno ou de gamela à cabeça, vinda do lameiro.
Aprendeu truques de cartas e dados e as maneiras de enganar o estalajadeiro nos “pintos” de vinho a pagar.
Aprendeu a usar a adaga, a espada e a moca para se defender dos mais exaltados, enganados ou avinhados.
E aprendeu, claro, a tanger instrumentos musicais, da cítola à “vihuela” e ao pandeiro.

Na flor da sua juventude conheceu, biblicamente falando, todas as que pode e com uns engodos cada vez mais elaborados.
E, consequência de tudo isto, lá começou o desvario da sua vida...

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (IV)



(IV)

Essa rapaziada dizia ir e vir da velha cidade de Salamanca, a três dias de caminho se a pileca fosse boa. Segundo contavam, lá existia, desde os idos de 1218, uma coisa fundada pelo velho Rei de Leão e Castela a que chamaram os Estudos Gerais, onde cursavam Leis e Cânones, que é como quem diz, estudavam as Ordenações e aprendiam para clérigos, na sua maior parte. Parece que uns anos antes esses estudos se faziam mais a Norte numa outra cidade chamada Palência. Mas alguma coisa não havia corrido bem e então o monarca havido situado esse centro de estudo na mais pacata cidade de Salamanca.

Aparentemente passavam lá três estações do ano frequentando as cátedras que estavam espalhadas por Colégios Maiores e Menores e fazendo de tudo um pouco para sobreviver, sobretudo no Inverno frio e gelado da velha Helmântica. Até porque o soldo que levavam de casa cedo se esgotava com o vinho, a comida e as mulheres.

Mas os que por ali paravam pareciam saber bem mais da vida mundana do que de leis e da vida do Nosso Senhor Jesus Cristo. Puxavam das adagas e das espadas quase sem motivo, pareciam concursar quanto ao que mais se conseguia empanturrar com os cabritos da estalagem ou quanto a qual deles dormia até mais tarde ou mais alto ressonava naquelas suas curtas paragens. Mas, melhor do que isso, e o que Jaca e seu pai mais apreciavam era a sua capacidade para tanger instrumentos, bailar e cantar até cair para o lado. E quando o faziam o sucesso era tal que parecia aparecer sempre alguém para pagar as contas da hospedagem.
Também os pais e irmãos das moças casadoiras aprenderam nessa época do ano a vigiar mais apertadamente as suas catraias porque eles pareciam saber tudo sobre como as levar na conversa. Além da língua popular falavam também o latim como os curas e também uma outra versão macarrónica daquele languajar que só eles compreendiam.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (III)



(III)
Daí para a frente olhava as mulheres com uma gula cada vez maior, acabando os seus desejos – e receios, ao mesmo tempo – mais ou menos três anos mais tarde por se concretizarem três anos mais tarde por ocasião dum recado que fizera a mando de sua mãe a casa da viúva Sancha mulher risonha, atrevida e ainda nova – não teria ainda tinta anos –, cujo marido morrera havia cinco anos numa sortida além Tejo contra os infiéis por ordem de El-Rei.
Nesse dia, quando ela lhe pediu para a ajudar a mudar uma arca para o seu recesso e depois com ar maroto o empurrou para dentro do seu catre, caindo-lhe em cima com a longa saia já segura e levantada pela cintura, ele apenas se deixou ir, suando e resfolegando enquanto o corpo lhe permitiu, durante toda a tarde, e que lhe mereceu da mãe um reparo pela tardança a que apenas conseguiu balbuciar um “vi um pássaro raro, minha mãe, e andei atrás dele a ver se o agarrava. Da maneira que cantava quis trazê-lo para meter na gaiola de Vossa Senhoria”.
Nos anos seguintes, e à medida que melhor aprendia as artes do namoro, correu todas as moçoilas que conseguiu, tendo ganho fama nas redondezas pelas suas façanhas e atributos e um par de corridas desabridas quando algum pai ou irmão o tentava surpreender com alguma das fêmeas da casa.
Diga-se que, entretanto, ele se havia tornado um belo rapaz, esperto e especialmente dado aos jogos florais e de peleja em que melhores professores não poderia ter tido, como se verá a seguir.

O pai de Jaca, Rodrigo, apesar de homem rústico e agarrado á terra, ao ofício e à casa, sempre tivera também uma grande inclinação para a taverna, para o jogo, e para bailar e tocar. Tinha até em casa uma cítara que aprendera a arranhar com um mouro, Ibn Al Bakr, que era um renegado e tantas vezes servia de guia nas expedições guerreiras para Sul e ali pela terra assentava nos intervalos.

Nas investidas que fazia à estalagem, onde ficava a taverna, tomara conhecimento com uns viajantes sazonais que por ali costumavam passar no princípio e no fim do Verão. Gente nova, uns mais ricos que outros, mas que viajavam em conjunto, uns mais afoitos e para sul, contornando a Serra da Estrela pelo Meridião, rumo a Santarém ou Lisboa, outros mais cautelosos, optando antes pelo lado Norte, mais seguro, rumo a Veseo, Coimbra, Aveiro, Porto ou Guimarães. Nem todos portugueses pois às vezes via uns magotes de castelhanos, leoneses e galegos que com eles se misturavam e pareciam vir passar o estio nos mais frescos ventos do Reino de Portugal.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (II)



(II)
O pai de Jaca era pois um homem do povo, mas um homem honrado. Tinha até sido Louvado em querelas e Prócere na outorga de dois forais, a mando um de D. Sancho II e outro já do próprio Rei D. Afonso III. Enfim, coroando os seus bons serviços prestados havia sido elevado à condição de cavaleiro menor – “Infanção”, como então se dizia.
A mãe, D. Brites, mulher trigueira e fértil tinha já parido cinco filhos antes do nascimento dele, dos quais apenas uma menina mais frágil não tinha sobrevivido ao primeiro ano de vida pela infelicidade de ter comido umas papas de milho em cuja farinha uns ratos se haviam conseguido espojar apesar de guardada na masseira. D. Brites governava a casa impondo forte figura matriarcal onde nem o pai se atrevia a interferir, acompanhada por algumas raparigas das vizinhanças que na casa faziam algumas jornas ou ali se recolhiam quando pais ou maridos partiam para a anúduva ou para a hoste.

Desde pequeno sempre se habituara à revoada de saias que a mãe comandava e ao cacarejar delas quando estavam juntas e na conversa, aos risos e arrulhos quando algum moço varão rondava o lagar, aos cantares agudos e sonoros nas mondas e desfolhadas, quase estranhando o silêncio quando elas se recolhiam.
Aos dez anos começou a olhá-las de maneira diferente, prestando cada vez mais atenção aos seus colos, imaginado o que iria por baixo daqueles camiseiros de linho branco que elas escondiam sob o colete. Daí a ir espreitá-las a banharem-se nuas no rio por trás da Fraga da Moura foi um passo. E só começou a perceber porque se chamava assim a Fonte dos Amores quando num certo fim de tarde de Primavera, descansando de uma ida aos ninhos, ouviu uns risos baixinhos vindos do chafariz. Espreitando entre as urzes e giestas espantou-se ao reconhecer a Teresa, filha casadoira de um vizinho e que passava o tempo lá me casa, de jarro debaixo do braço em conversa sussurrada com Soeiro Mendes, sobrinho do Senhor do Castelo do Sabugal. Mais espantado ficou quando a viu fugir rindo para o prado que ficava mesmo por baixo do seu esconderijo e ele a ter seguido e apanhado facilmente rolando pela erva agarrados até um canto encostado a um muro de pedras soltas onde as papoilas pareciam fazer uma colcha de brocado carmim.
O que presenciou a seguir não mais lhe saiu da memória. Mesmo estendido ao comprido no chão com a caruma a espetar-se no burel das calças e a picá-lo, não ousou mexer-se enquanto os outros por ali estiveram. Mais enfadado ficou ao sentir-se ruborizar pingando suor das suas guedelhas, mas sobretudo por sentir entumecer as suas partes baixas contra o chão, o que cada vez mais lhe acontecia, mas apenas era costume ao acordar, especialmente quando o tempo aquecia.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (I)


Jaca Rodrigues nasceu na vila de Quadrazais, lá pelo ano de 1254, e que os pais nunca esqueceram por saberem estar a decorrer as cortes de Leiria para onde tinham partido um par de homens bons da comarca, o Governador da comarca de Sabugal, nobre de baixa estirpe e o superior do convento primordial, muito mais tarde chamado de Sacaparte, de origem templária, lá para os lados de Alfaiates, amigo e protector da sua família, que a sua mãe nunca deixou de lamentar não ter podido ser o seu padrinho e o ter benzido com os Santos Óleos no Baptismo.
Era filho de Rodrigo Jaca, o ferreiro da aldeia, homem de trabalho e dedicação à família e à Pátria mesmo nas mais difíceis condições. Na verdade, a família tinha vindo para aquelas terras seguindo a conquista feita por El-Rei D. Afonso, o Fundador, e para povoação daquela zona da raia. O bisavô do seu pai, Pêro Rodrigues, mais não era que um servo da gleba em que o lugar-tenente do monarca havia reparado pela sua força e destreza e tomara a seu serviço. E que não hesitara em o acompanhar nas campanhas que o Rei ordenara ao sentir o Condado que o seu pai lhe deixara demasiado apertado para as suas ambições. Naqueles anos, a valentia do moço tinha sido tal que o dito nobre o tomara sob a sua protecção, o tinha tornado um homem livre, lhe tinha dado uma tença e um pequeno casal mesmo acabado de tomar aos Mouros.
Acabou por casar com uma rija moça judia que apesar de ter nascido Sara acabou por casar pela Santa Igreja com o nome mais cristão de Leonor e tomar aquelas terras como suas nem que para isso a terra lhe tivesse de comer o sangue.
E nada fácil foi a vida de Pêro Rodrigues e dos seus sucessores. Afinal foram muitos os anos sem um real e verdadeiro descanso. Se por um lado tinham de atentar nas investidas da Mourama, por outro não podiam deixar de olhar para o lado, de onde muitas vezes vinham os castelhanos, os salteadores nos primeiros tempos e depois os soldados do rei.
E o juramento do patriarca sempre foi mantido pelos filhos e pelos filhos dos filhos. Mesmo quando desaparecido o Fundador e os castelhanos tomaram de novos aqueles vales, serranias e florestas, eles se ali mantiveram aparentando fidelidade ao alcaide de ocasião mas nunca esquecendo a fidelidade à dinastia Bolonhesa do Reino de Portugal. E como eles tantos outros. Se não, como compreender que naquele ano de 1254 os homens do Sabugal se apresentassem perante El-Rei D. Afonso III em Leiria, e não perante o velho Rei Afonso X de Castela e Leão, O Sábio, em Toledo ou em Cáceres?

terça-feira, 4 de setembro de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (VI)



“O Traçadinhas” (VI)

Toda a caloirada ficou a assistir ao primeiro ensaio do ano. Carlos reparou que os tunos pareciam estar especialmente felizes por se reencontrarem depois das férias. Apesar de alguns erros causados pela “ferrugem”, fruto do Verão, os ensaios foram bem animados e o gosto aparente em que toda a gente punha no que estava a fazer cativaram-no definitivamente. Havia de entrar. Havia de conseguir passar as provas todas de que tinham falado. Faria o que fosse necessário para conseguir. Estava certo que já tinha tido coisas piores pela frente.

No final entregaram um instrumento a cada caloiro e obrigaram-nos a tocar uma coisa todos juntos. Mas eles, caloiros, é que tinham de decidir. Entreolharam-se todos e não bastando os instrumentos que queimavam as mãos de cada um, não havia maneira de se porem de acordo. Perante a risota geral lá acabaram por arranhar os “passarinhos a bailar...” que ainda foram obrigados a completar com a respectiva coreografia.
Acabou tudo à gargalhada e saíram em direcção ao bar pois vários estavam já fartos de protestar com sede e com saudade de umas “bejecas”, não sem que no caminho tivesse havido uma distribuição abundante de “calduços” e gozo com todos os novatos.

- Mas olha lá. Tu estavas mesmo com pressa de tirar a naftalina à capa, não era, caloiro?
- Eu julgava que toda a gente já viria assim. Eu via o pessoal sempre trajado na televisão.
- Pois. Vocês lá na serra não deviam ter muito mais para fazer. Ainda deves ser dos que acreditam em tudo o que vêem. – Gozou um outro.
- Então, mas assim é que é bonito. Se não usar o fato enquanto cá estiver quando é que o vou fazer?
- És muito arrebitado a responder. Vê lá se não te queimas... ou se nenhuma trupe te apanha quando estiveres fora da tuna. – Observou um terceiro.
- Trupe? O que é isso? São aqueles que se juntam à noite com as capas todas traçadinhas?
Mais uma gargalhada geral.
- Ora aí está, sem tirar nem pôr. – Sentenciou o da voz do trovão que entretanto se tinha juntado ao grupo. – Vens da serra, és atrevido e teimoso, e arreias logo o traje como um doutor sem pensar no que dizes nem no que fazes e não tens medo. Se o Aquilino ainda andasse por aqui punha-te logo nome. Como não está ponho-to eu e dele já não te livras. Enquanto estiveres aqui dentro nunca vais conhecer outro. Daqui para diante, e que Deus te abençoe, passas a ser o Traçadinhas!


Fim (... de “estória”)

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (V)



“O Traçadinhas” (V)


Quando acabaram as exposições dos veteranos, durante as quais ele estranhou a falta de atenção de alguns dos novos que o acompanhavam, que pareciam não se interessar pelas regras que estavam a ser expostas, que para ele constituíam novidade e um mundo novo que desconhecia, mandaram-nos ir junto de um acordeonista que os mandou cantar notas musicais das mais graves às mais agudas. Segundo percebeu estavam a tentar catalogar cada um deles quanto ao timbre. Pelo que pareceu, a maioria seriam barítonos, alguns, poucos, baixos e ainda menos, tenores. Uns cantavam melhor que outros. Alguns mesmo, pouco ou nada cantavam. Mas todos foram tratados da mesma maneira, tendo sido dito a cada um para não se esquecer dos naipes de vozes a que ficariam a pertencer.
- Agora precisamos de saber que instrumentos vocês tocam, se é que tocam algum! – Disse o presidente.
Começaram por uma das pontas da fila de cadeiras onde estavam sentados. A maioria dizia tocar um pouco de viola, um disse só perceber de percussões, outro de acordeão, outros dois bandolim e cavaquinho. Dois disseram mesmo não saber tocar qualquer instrumento.
Quando chegou a sua vez, disse, sem pensar:
- Eu toco clarinete.
- OUTRA VEZ? – Disse tonitruante atrás de si a voz que ele já conhecia do primeiro dia. – Não te disse já que isso para aqui não serve?

Carlos ficou meio acabrunhado e sem compreender a embirração com o clarinete. Afinal, na tuna lá da terra não era assim. Cada um tocava o que sabia ou lá aprendia. Era verdade que o mestre costumava refilar baixinho sempre que alguém novo se apresentava e só tocava sopros, mas esses lá iam acabando por ficar. E ele também ouvia a conversa entre os velhotes da tuna preocupados por cada vez haver menos gente interessada na tuna e os novos preferirem ir só aos bailes e discotecas ou então optarem por tocar em conjuntos. Mas nunca ninguém tinha ficado de fora pelo que tocava. Recordava-se até de velhas fotografias, algumas com dezenas de anos em que se viam os tunos com instrumentos que agora já nem usavam. E as pautas do mestre até tinham os arranjos para os metais. Em tempos tinham tido inclusive um trompete, embora esse só tocasse em algumas marchas e nos bailes de arraial em que não havia amplificação. Mas daí a darem a entender que ali naquela tuna não se tocavam desses instrumentos ainda ia uma distância muito grande.
- Sabes, pá. Nós já temos conhecimento que tu tocas lá na tuna da tua terra. Mas aqui as coisas são um pouco diferentes. – Dirigiu-se-lhe com compreensão o Presidente. – As tunas académicas são um pouco diferentes não só no repertório, que não comporta metais mas também nos princípios e razões da utilização de cada instrumento. E mesmo os sopros só com flautas de Bisel. É que aqui gostamos de respeitar aquilo que alguns chamam a tradição das tunas académicas. Se fores aos dicionários vais ver que diz que elas são agrupamentos de estudantes que tocam essencial e tradicionalmente cordofones.
E acrescentou que além destes, por questões rítmicas, também era costume ter pandeiretas, tendo-lhe apontado um exemplar pousado em cima de uma mesa, esse, que era diferente dos pandeiros que ele conhecia quer das Bandas quer de alguns ranchos, apesar de umas serem com aro em metal e as outras em madeira. Mas nenhuma delas tinha pele. Para isso haviam os bombos e os adufes em algumas regiões.

- De palheta, - acrescentou o Presidente – só mesmo o acordeão que começou a ser usado quando mais tarde também chegou aos ranchos folclóricos. E chegou porque era mesmo preciso, embora tenha sido difícil. Não só era muito caro para o povo comum como haviam poucos que o aprendessem a tocar. Mas como os arraiais eram cada vez maiores e era precisa projecção de som, lá os aceitaram. O mesmo aconteceu nas tunas universitárias. Agora os sopros é que não – reafirmou – Se pensares bem, como a estrutura musical das músicas da tuna está melodicamente assente nos arranjos de bandolins e bandolas, ter trompetes, clarinetes ou trombones iria esconder os trabalhos de cordas. Já para não falar na dificuldade que toda a gente teria de se ouvir uns aos outros. E a perturbação que isso iria causar nas vozes, já pensaste?

Carlos percebeu onde ele queria chegar. Aquilo parecia ser lógico. E, aparentemente, ele sabia do que estava a falar. Além do mais na tuna lá da terra, ultimamente, tocavam dez, quinze no máximo e quando todos estavam presentes. Ali, na sala onde agora se encontrava estariam mais de trinta ou quarenta, segundo agora se apercebia. E assentiu com a cabeça.
- Se quiserem posso tentar as violas ou os bandolins.
Levando uma palmada nas costas que não soube de onde vinha, alguém disse:
- Assim é que se fala, ó caloiro!

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (IV)


“O Traçadinhas” (IV)

Naquela Quarta-feira, ao fim da tarde, Carlos fez o balanço desses primeiros dias. Tinha conhecido o centro da cidade e o Pólo Universitário. Tinha conhecido alguns dos outros caloiros, colegas de curso, onde se tinha começado já a esboçar um círculo de conhecimentos e amizades. Fora às primeiras aulas estranhando as diferenças em relação ao Liceu e tendo mesmo ficado assustado quando um dos professores aparecera com duas malas de viagem cheias de livros, dizendo ser a bibliografia de consulta obrigatória. A questão é que havia livros em alemão, russo e mesmo israelita que, para ele, era o mesmo que chinês. A sorte é que tinha a seu lado um colega que já estava a repetir a cadeira e que o sossegou dizendo que ninguém lia aquilo, que era mais fogo de vista que outra coisa.

É claro que também já tinha sido “praxado”. Primeiro, numa aula em que estranhou ser o professor tão novo e se ter fartado de dizer coisas sem pés nem cabeça, a ponto de julgar que estava ou na sala errada ou noutro mundo. Só à saída percebeu a esparrela... E depois porque todos os dias apareciam trupes de veteranos que os mandavam fazer coisas insólitas mas lhe iam mostrando quer a cidade quer a Universidade e os seus costumes.

Naquele dia jantou cedo, quase foi apenas um lanche, e após longo matutar, decidiu vestir a capa e batina pela primeira vez. Cheirava obviamente a novo e estava bem vincadinha e sem quaisquer nódoas ou rugas. Ataviou-se como pode e soube e saiu de casa sentindo-se orgulhoso rumo à Associação Académica.
Lá encontrou a sala da Tuna onde entrou decidido. Já lá estava uma dúzia mais de caloiros que ele já conhecia de vista, mas nenhum trajado como ele. Reparou como os tunos que lá estavam ficaram a olhar para ele com cara de espanto.
- Olha um apressadinho! – exclamou um deles.
- Ó caloiro, se estivesses noutras Academias nem sabes no que te tinhas metido... – disse outro.
- Pois, pois – riu-se um terceiro – não te safavas de umas rapadelas e de sanção de unhas. A tua sorte é que aqui as coisas funcionam de maneira diferente.
- Então eu ainda não posso vestir o traje? – perguntou intimidado e corando ao sentir-se o centro das atenções.
- Bem, aqui até podes. O “código” deixa, depois da matrícula. Mas se fosse noutros sítios... – retorquiu o primeiro.
- Bem, sentem-se lá todos que nós vamos explicar como tudo isto funciona.

Na meia hora seguinte, o chefe, um dos que parecia mais ponderado e respeitado pelos restantes falou-lhes sobre o que era aquela tuna, os princípios que respeitavam, as actividades que tinham, a música que tocavam, as cerimónias em que costumavam estar presentes, a colaboração com a Universidade e as vantagens de fazer parte da tuna, tendo ele ficado espantado ao saber que os elementos da mesma tinham direito a uma época de exames especial.
Depois um outro, o mesmo que o tinha abordado no primeiro dia, falou-lhes sobre a praxe da tuna, a hierarquia interna, o processo de admissão, as responsabilidades individuais e colectivas e, em geral, sobre as regras de relacionamento que tinham entre todos enquanto membros da tuna.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (III)


“O Traçadinhas” (III)

Na manhã seguinte, lá foi procurar os serviços do Politécnico para fazer a matrícula, fazendo os possíveis para passar despercebido. Mas estavam logo à entrada uns “veteranos”, como se tratavam entre eles, embora tenha achado que a maioria não teria mais do que um ou dois anos que ele. Puseram-no logo numa fila e mandaram-no fazer uma dúzia de coisas parvas e ensinaram-lhe três ou quatro frases que mais pareciam de uma claque de futebol. Apesar de tudo, divertiu-se e aquilo acabou por o descontrair.
Mas ao preencher os papéis, apareceram-lhe outros trajados e bastante mais velhos, que traziam uma bandeira, estandarte segundo diziam – e não era, estandarte era o que tinha o rancho lá da terra, em forma de “T” – umas pandeiretas pequeninas e alguns instrumentos de cordas, violas, cavaquinhos e bandolins.
- Ó caloiro, sabes música?
- Um bocadinho, respondeu timidamente.
- Então vais p’ra Tuna. O que é que tocas?- Clarinete.
- Isso para aqui não serve. Não sabes mais nenhum?
- Não serve? Porquê?
- Esses são contos mais largos. Mais tarde te explico, se valer a pena. Mais nenhum?
- Também toco um pouco a rebeca e sei os acordes do cavaquinho e da viola.
- Isso já é outra conversa. Bom, tens aqui o folheto. Apareces na quarta-feira à noite na Associação de Estudantes, depois do jantar.
- Eu nem sei onde isso é.
- Está bom de ver. Desenrasca-te. E não te esqueças eu já aqui fiquei com os teus dados. Encontro-te com facilidade.
- Farei os possíveis.
- Isso também não existe. Apareces e ponto final.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (II)


“O Traçadinhas” (II)


Quando acabou o Liceu lá na Vila, e porque o rapaz tinha mostrado uns dedos de testa, os pais e irmãos sempre o incentivaram a continuar os estudos. Afinal, não existia nenhum doutor na família e desde que ele não fosse nenhum estroina, talvez fosse possível, mesmo com o sacrifício de todos, pagar os custos com o canudo.
E o moço, que até achava estreitas as vistas que tinha do vale e dos montes de socalcos, lá foi a Vila Real candidatar-se à Universidade. Com alguma sorte e sabendo os sacrifícios que a família teria de suportar, mais feliz ficou quando soube ter entrado num Politécnico, numa Engenharia qualquer.
A música sempre tinha feito parte da sua vida. Tinha entrado cedo para a Banda pois desde os quatro anos começara a soprar no clarinete do pai que lhe tinha mostrado os rudimentos. Desde os nove que tinha ido para a Escola da Banda, desvendando os segredos das pautas que via lá por casa. E aos dezassete anos já não tinham conta as Romarias, Procissões, Desfiles e Concertos de coreto e de Teatro em que tinha estado. Até já tinha aparecido na televisão num daqueles programas da manhã por ocasião das Festas da Vila. E que bem se sentia quando vestia a farda e o boné para ir tocar as Marchas no S. João.
Mas agora que ia para a Universidade o que ele queria era vestir a batina que via a alguns universitários, com aquela capa que eles viravam para a frente e estava coberta de coloridos emblemas que sempre foram um mistério para ele. Não ousava pedi-la aos pais. Já bem bastava o que iam gastar com ele em livros, comida e estadia. Foi logo oferecer-se ao irmão par a trabalhar no Verão, período em que este andava sempre a queixar-se da falta de mãos extra. E lá passou Julho e Agosto com os tubos numa mão, o malho e o alicate na outra. Mas no final, maravilha. O dinheiro ganho chegava para o fato todo, uns sapatos pretos, uma gravata da mesma cor, duas camisas e ainda sobrou algum para festejar a despedida com os amigos de infância.

Recordava com carinho as lágrimas da mãe ao fazer-lhe a trouxa, a viagem na carrinha do pai, em que houve mais silêncio que outra coisa qualquer, e o forte abraço do pai quando, depois de encontrado um quartinho onde ia ficar, o instou a trabalhar duro e aproveitar a oportunidade que nenhum dos irmãos tivera. E os conselhos dos pais quanto ao cuidado a ter com as más companhias, as cervejas e as raparigas.
E lembrava-se também do friozinho na espinha quando eles abalaram e o deixaram sozinho numa cidade que não conhecia a mais de duzentos quilómetros de casa, e maior, muito maior até do que Vila Real, que ele até conhecia muito bem.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

“Os Estéreo Tipos” (1) (I)


“O Traçadinhas” (I)

Carlos nasceu numa pequena aldeia à beira Douro perto da vila. Os pais eram agricultoras remediados donos de uns pedaços de terra aos socalcos onde cuidavam da vinha e de umas leiras no vale onde tinham a horta e o pasto para a forragem do par de bois que os ajudavam nas lides campestres. O pai tinha estado alguns anos na Alemanha emigrado mas não se tinha dado nem com o tempo nem com o feitio dos teutónicos, já para não falar das saudades da mulher que tinha ficado na terra. Voltou logo que juntou um pequeno pé-de-meia que lhe permitiu uns arranjos maiores na casa que tinha herdado dos pais e a compra de umas, poucas, alfaias agrícolas que ajudavam na amanha das terras. Carlos era o filho mais novo de três irmãos. Serôdio, já mal se lembrava desses tempos da vida do pai. O irmão mais velho, João, tinha ficado com poucos estudos e tinha-se feito à vida, primeiro na terra, depois nas obras e por fim estabelecendo-se por conta própria num negócio de canalizações. Ana, a irmã do meio, tinha feito o Liceu, casado com um vizinho e abalado a trabalhar com o marido lá para os lados do Porto. Ele ainda se recordava do casamento dela ainda miúdo, talvez com uns sete anos.
Desse casamento ainda se lembrava que tinha tido a boda no Salão da Paróquia, e cuja animação tinha sido feito pela Tuna da terra e com a presença do Rancho da Freguesia onde ela dançou até casar.


Ele conhecia todos os seus elementos, tanto tempo eles passavam na adega lá de casa onde costumavam ensaiar. Não só o pai tinha sido em tempos o mestre, como o irmão João nela tocava a sua rabeca desde que se conhecia como gente. Por tudo isto, lá em casa sempre se respirou música nos tempos de descanso e lazer. O pai tinha um clarinete e um trompete que conservava desde os seus tempos de juventude. Já o irmão sempre mostrara maior inclinação para as cordas.

Nota Reflexiva e Explicativa



Fruto da inexperiência com esta nova ferramenta que são os "blogs", este meu cantinho irá paulatinamente ser modificado e adaptado às necessidades do momento.

Assim, as "estórias" a publicar serão descontinuadas, isto é: cada cenário temporal, espacial ou temático poderá ser abandonado num determinado momento para mais tarde ser retomado.

Por outro lado, no caso de cada "estória" ser demasiado longa, continuará a opção em a dividir por partes para tornar a leitura menos compacta e maçuda.

Além da que vai ser começada a seguir, e que, pela própria natureza terá personagens diferentes e em tempo de publicação diferente, estão já em marcha duas outras com parâmetros completamente diversos.

Concluindo: nem mesmo eu sei o sentido em que tudo isto vai evoluir. As opiniões, sugestões, e, porque não, colaborações dos amigos também contarão. E muito.

P.S.- Pelo que me foi dito, é mais um dia negro no mundo tunante. Mais um tiro na credibilidade das tunas. Parece que agora a problemátiaca da "sapatilha" até já chegou à Televisão. Há quem consiga fazer mais que todos os "MATA's" juntos. Valham-nos Todos os Santos que um só já não chega...

Abraço deste vosso Amigo

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Amores de Estudante (IX)

Quando deu por si já o Metro havia passado a paragem pretendida, o que o fez sair na seguinte e esperar o próximo para voltar atrás. Sorriu enquanto esperava, recordando como ela o tinha conduzido ternamente pela mão duas portas mais além no corredor levando-o para o seu quarto. Estremeceu, sentindo ainda o fremor da paixão das horas que se seguiram. Serenou, lembrando-se como adormeceram nus enroscados um no outro. Focou o seu olhar, admirando o corpo perfeito dela adormecido e abandonado quando acordou com um pregão solto na rua. Lembrou-se do cheiro dela quando lhe deu um beijo na testa e se despediu ao ouvido dizendo-lhe baixinho: “Até logo. És linda”.

Campo Grande. Saiu da estação rumo à luz e ao verde ali próximo. Anteviu desde logo várias capas negras em pequenos grupos conversando ou tocando. Reconheceu alguns dos seus a quem se dirigiu.
- Ora seja bem aparecido, Vossa Excelência! – Exclamou o “Letras” de sobrolho franzido – estávamos a ver que te tinhas perdido. Espero que o caminho não tenha sido demasiado longo!
- Foi, pá. Muito mais longo do que possas imaginar. Mas já não está na hora de ir comer alguma coisa? É que estou com uma fome de cão. Desde ontem que não ponho nada à boca. Vamos?
- Vamos lá, então. Daqui a nada começa o rally das tascas, ou lá o que é…

FIM (... do episódio, é claro)

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Amores de Estudante (VIII)

- Queres tomar alguma coisa? Deve haver para aí algo. Eu já volto – disse, seguindo ao longo de um corredor e indicando-lhe a sala onde ele se desfez da capa e se sentou num sofá bastante usado.
Pegou na viola e muito mansamente arranhou uns acordes, trauteando a melodia quase em murmúrio. Sentia-se um pouco tonto mais pelo inesperado do que pela bebida. Não sendo com a Tuna, qual seria a probabilidade de poder sonhar com a possibilidade de acontecerem coisas destas? Cada vez mais gostava do caminho académico que havia escolhido. Não só pelo brio que o obrigava a manter o seu percurso académico imaculado mas também porque, mais do que isso, ainda lhe permitia viver a sua juventude de uma forma rica e preenchida. Nem nos seus melhores sonhos à chegada à faculdade poderia alguma vez ter imaginado tudo o que a vida lhe estava a dar nestes últimos anos. Rejubilando interiormente, fez, sorrindo, um brinde mental: “Aos Amigos e aos Amores”.

- De que te ris?
Ela tinha assomado a porta da sala, já em chinelos. Tinha tirado o casaco e a gravata, desapertando o primeiro botão da gola da camisa. Trazia na mão uma garrafa de Porto e dois copos tirados do escorredor da cozinha.
- Estava a pensar que a vida às vezes é bela. Como é que eu podia imaginar que ia estar aqui a esta hora a …
Ela já tinha pousado os copos sobre a mesa e colocou-lhe um dedo sobre a boca impedindo-o de continuar.
- Não fales do que não sabes nem tires conclusões erradas. Não sei o que pensas mas nunca fiz o que estou a fazer hoje. Até estou com medo de mim mesma. Por tudo. Espero que não me tenha enganado a teu respeito e amanhã à tarde já tudo isto seja do conhecimento dos teus amiguinhos.
- Já me devias conhecer um bocadinho melhor. Sabes bem que eu não sou desses. Aliás, foi uma das primeiras coisas que os meus “amiguinhos”, como lhes chamas, me ensinaram. Se outra coisa não fosse, ainda gosto de pensar em mim mesmo como um cavalheiro.
- É. Vocês gostam de contar essa história. Mas quantos exemplos tu queres que eu te dê de casos em que eu sei que foi precisamente o contrário?
- Eu sei. Infelizmente andam para aí muitos, e muitas, segundo sei – disse, sorrindo maliciosamente – que não fazem a mínima ideia do que é ser tuno e de como se devem comportar em muitas situações. Mas é como em tudo, há filhos de muitas mães. Além do mais não é uma história, aconteceu mesmo. Segundo sei, há muitos anos, em Espanha, passou-se com uns da Estudantina de Coimbra. Parece que ficaram dois sozinhos com duas espanholas numa praia e eles perguntaram-lhes se elas, que não os conheciam de lado nenhum, não tinham receio de ficarem a sós com eles, estando longe de tudo e de todos. E a história ficou mais, sobretudo, pela resposta que elas deram e que os espantou: “- No, hombre! Porque un Tuno es un Señor!
- Onde é que já vão esses tempos.
- Também tens razão. Mas, felizmente, cada vez mais muitos de nós estamos a fazer com que os outros o aprendam e nunca se esqueçam disso.
- Queres beber mais alguma coisa? Aqui em casa só há bebidas de mulheres.
- Acho que já tenho a minha conta, por hoje. Mas se tu beberes, depois deixas-me provar o sabor da tua boca?
Ela sorriu e sentou-se ao colo dele.
- Acho que prefiro dar-te o meu sabor, sem quaisquer aditivos.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Amores de Estudante (VII)

- Talvez seja melhor termos um pouco mais de juízo. Isso aqui pode não ser seguro. Ainda aparece a Polícia ou pior…
Ele levantou a cabeça já bastante despenteada que emergiu de baixo da capa dela. Tinham-se escapulido para o meio do jardim, uns arbustos mais altos que formavam um copa em que se tinham tentado confundir com a noite. Ainda assim a vontade de parar era menos que nenhuma. Beijavam-se já há bastante tempo e entretanto aumentara a confusão em que ambos se acendiam e a ele, nesse momento, pouco apetecia retirar a mão do seio dela, quente e nem demasiado grande nem pequeno.
- Tens razão. Mas eu aqui estou como peixe fora de água, como sabes. Para onde é que eu te levo agora?
- Anda!
E levantou-se, fugindo-lhe e rindo. Ele correu atrás dela apanhando-a ainda em pleno relvado onde a fez cair uma vez mais, beijando-a. Ela abalou novamente, desta vez em direcção ao carro, onde entraram. Compôs a roupa e ajeitou o cabelo em desalinho.
- Já é tarde. Sabes o nome da Pensão em que ficaram? Eu levo-te lá.
- Não faço a menor ideia. E no estado em que estou neste momento, mesmo que soubesse…
- Não dizias, não era? – Riu-se ela – Bom, então talvez haja outra maneira se prometeres portar-te bem.
Levou-o internando-se na cidade, segundo percebeu, lá para os lados de S. Bento. Encontrou um lugar de estacionamento numa rua secundária ladeada de plátanos onde parou. Beijaram-se de novo até que ela decidiu sair levando-o para uma outra transversal onde alguns metros à frente parou, metendo as mãos ao bolso.

- Vivo aqui, anunciou.
- Ena, que grande prédio. Vivem cá muitas pessoas?
- Nem por isso. A maior parte dos apartamentos está arrendada a estudantes e professores, mas aqui à volta existem cada vez menos moradores. Toda a gente se queixa que isto está a ficar cada vez mais deserto.
- E em tua casa?
- Bom, além da minha prima, mais duas colegas. Mas hoje não está cá ninguém – disse numa voz sussurrada e que ele entendeu num misto de confissão e provocação.
- E arranjas-me aí um canto para ficar até de manhã?
- Se te portares bem, pode ser que sim – prometeu entrando no átrio do prédio. Agarra-te a mim porque não há luz nas escadas.
Ele não pensou duas vezes colando-se a ela e deixando-se conduzir pelo escuro. Na verdade, levaram mais de meia hora a subir dois lances de escadas até à porta do apartamento. Qualquer tropeção ou esbarramento era motivo para mais uns minutos de carinhos trocados. Por fim, lá entraram numa casa típica de estudantes em que ele não estanhou a desarrumação de livros e roupas nem os parcos móveis que constituíam o seu mobiliário.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Amores de Estudante (VI)

- Então, estás a gostar?
- Muito. Ainda assim isto é diferente do que imaginava pudesse ser.
- Ainda bem. Mas mesmo assim acho que tu hoje estiveste melhor na serenata. E decidi logo que de hoje não passava… Bom, vamos acabar as bebidas e sair. Ainda quero dar uma volta.

Ele pagou e saíram de novo para a rua. Curiosamente para ele, a mão dela voltou a procurar refúgio entre os seus dedos, acabando ambos por descer Alfama abraçados. Ele deu um leve beijo nos cabelos dela e apertou-a contra si, agradecendo-lhe a surpresa. Estava nervoso, muito nervoso e cada vez mais surpreendido. Ela não esteve com rodeios:
- Sabes, há muito tempo que ando de olho em ti e não me parece que tenhas dado conta disso. Como não acho que sejas assim tão tímido, ou andas distraído ou com o interesse voltado para outro lado. Continuas a não ter namorada, pois não? – Perguntou-lhe, olhando-o directamente nos olhos.
Ele agradeceu-lhe a noite e procurou disfarçar o rubor que o assomava incontrolavelmente.
- Tu sabes bem a admiração que sempre tive por ti. Nunca mais do que isso me passou pela cabeça porque sempre achei que eras areia demais para a minha camioneta. Além do mais sou um simples rapaz de província.
- Tolo!
E mais resposta não teve, tendo-o ela apertado um pouco mais e feito ambos estugarem o passo.
Entraram de novo no automóvel que ela fez seguir até à zona de Belém onde se forma sentar no paredão junto ao rio.
- Se soubesses com me apeteceu fazer isto da outra vez em Coimbra… – disse ela fixando o rosto dele e impedindo-o de responder o que quer que fosse ao oferecer-lhe os seus lábios.

Voltou a si caminhando em plena Praça do Comércio menos agitada que o normal por ser uma manhã de Sábado e procurando a melhor maneira de chegar ao Campo Grande onde seguramente já o esperariam. Que o melhor seria apanhar o Metro no Rossio, disse alguém.
Entrou na última carruagem apesar da composição estar muito longe de ir cheia. Permaneceu de pé, agarrado a um varão, voltando a mergulhar nas memórias recentes, talvez por medo de as perder.

domingo, 19 de agosto de 2007

Amores de Estudante (V)

- Então que tal? – Perguntou ela.
- Para primeira impressão, é muito giro. Também se canta, pelos vistos. É caro?
- Nem muito nem pouco. O normal. Mas costumam passar-se aqui uns bons serões. O dono também é tuno e guitarrista, sabias? Mas hoje não deve cá estar, logo vemos.

Ele continuou na cerveja, ela preferiu um Porto. Depois do primeiro gole, ambos partilharam um cigarro. Falavam de banalidades quando apareceram dois instrumentistas que se foram colocar no meio da sala que apesar do seu tecto alto se mantinha com ar intimista. Já só existia o bruxulear da luz das velas e uma, pouca, claridade vinda de onde devia ser a copa. O silêncio aumentou às primeiras notas da guitarra, gemida, e suportada pelo batimento firme, quase cavalheiresco, da viola. Aproximou-se uma mulher nova, vinte e poucos anos, que desfiou dois ou três fados dos antigos. No último deles, ela segredou-lhe ser do género que não apreciava por ter uma daquelas letras de “faca na liga” que já não se usa. No final, a fadista retirou-se sob os aplausos, especialmente entusiásticos dos estrangeiros que ele verificou constituírem a maior parte da assistência.
Ao sair, cruzou-se numas escadas com outra figura que ele reconheceu imediatamente. A puxar para o forte, razoavelmente alto, moreno e de cabelo ondulado acamado por gel, ali estava o seu conhecido “Supermário” que ele conhecia quase desde o início da sua vida nas tunas e que respeitava profundamente por reconhecer ser uma figura ímpar, além de que sempre lhe invejara secretamente o seu timbre, aparentemente tão comum, mas que reconhecia ser único e de dificílima imitação. Como esquecer as gloriosas versões que ele cantava na Tuist como a “Amélia dos Olhos Doces” ou a “Estranha Forma de Vida”?
O Mário atacou alguns dos fados do costume e ele rejubilou ao aperceber-se que os guitarristas o estavam a acompanhar no modo “lundum”. Quando se iniciaram os acordes da “Lágrima”, o Mário reconheceu-os, piscando um olho. Ela quis comentar-lhe algo ao ouvido, mas, como ambos tinham tido o mesmo reflexo, isso só provocou uma leve cabeçada entre os dois, ficando-se a intenção numa mera gargalhada abafada. Mas ela, para o sossegar, ajeitou-se uma vez mais na cadeira, aninhando-se mais contra o corpo dele e sobre a sua mão pousando a dela e aí a deixando esquecida, o que não só o surpreendeu mais uma vez mesmo lhe sendo agradável como lhe fez aumentar a pulsação a ponto de julgar que o barulho dos seus batimentos cardíacos estava a ser ouvido em toda a sala.
Quando a sessão terminou, o Mário passou pela mesa deles para os cumprimentar mas não se demorou dizendo que ainda estavam à espera dele noutro sítio.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Amores de Estudante (IV)

Seguiram calados mais uns minutos enquanto ela cruzava cautelosamente algumas das grandes Avenidas de Lisboa, compenetrada na condução.
Ele apreciou-lhe discretamente o perfil, mais ou menos iluminado à medida que passavam pela iluminação laranja que traça as artérias das cidades grandes. O nariz um pouco arrebitado, o queixo com uma covinha a que ele achava tanta graça e era sempre um dos motivos dos seus piropos e o cabelo liso pelos ombros que lhe tapava as orelhas. Era bela. E como é que seria possível que nunca de tal se tenha dado conta do que agora admirava? E se... Mas afastou a ideia que pela primeira vez lhe passou pela cabeça. Afinal, ela sempre tinha sido uma boa amiga e nunca... Até lhe tinha apresentado umas colegas numa outra ocasião, bem sabendo que uma delas havia passado então a noite consigo. E nem sequer quis saber nada depois disso sobre o assunto. Pelo menos, não perguntou.

Estavam agora perto de Santa Apolónia. Ele conhecia a zona por já ter ido várias vezes a Lisboa de comboio. E isso até poderia estar a acabar. O pai tinha-lhe prometido um carro se a época de Setembro corresse bem. Os exames já tinham passado, só faltava saírem as notas e até parecia que tinha valido a penas perder metade das férias a estudar e não ter ido para o Sul de Espanha com o resto da Tuna onde eles se tinham safado bem, segundo diziam.
Ela virou por ruas mais apertadas e estacionou junto a um pequeno largo sem qualquer dificuldade apesar de ser Sexta-feira.
- Olha, ali é o Museu do Fado, sabias?
Ele fez-lhe prometer que o havia de levar lá durante o dia porque queria conhecer o espaço. Ela assentiu e arrastou-o por ruelas inclinadas que rasgavam Alfama e que ele só conhecia dos postais ilustrados, com tascas mal iluminadas, porta sim, porta não, de onde saíam cantares roucos e lamentosos.
- Apesar da aparência, disse ela rompendo o silêncio em que iam lado a lado, isto é tudo menos fado vadio. Disso, parece que agora já há pouco. É mais um negócio para turista ver. Lá em baixo, no Largo do Chafariz de Dentro onde parámos, estas casas têm uma espécie de angariadores que ganham à comissão para conduzir os incautos a estes lugares. É mesmo para inglês ver. Mas de outra maneira, não se aguentavam. Bom, chegámos. É aqui.

Num largo e naquilo que parecia um solar antigo, entraram numa sala forrada a azulejos portugueses antigos, não muito grande e que aparentava ter sido uma velha capela. Uma dúzia de mesas, se tanto, e ao fundo um balcão que ele reparou estar coberto de pequenas estátuas representando Santo António, de todas as formas e materiais. Ele sempre estranhou essa especial devoção quando sabia que o padroeiro da cidade até era S. Vicente, em cujas escadas da respectiva Igreja em tempos tinha estado num espectáculo que boas recordações havia deixado. A sala estava quase cheia mas afortunadamente uma mesa pequena, num dos cantos, à direita, estava vazia e lhes foi indicada por um dos empregados.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Amores de Estudante (III)

Tirando isso, nada mais de especial tinha acontecido. Ele tinha apenas reparado que ela era bem torneada apesar de só a ter visto em ocasiões em que ela trajava com todo rigor, logo ele, que achava que o traje feminino devia ser ideia de alguém com grande maldade por fazer parecer todas as raparigas com um saco de batatas mal atado, a que nem sequer qualquer tipo de penteado em especial ajudava.
Ela ainda o tinha convidado para ele aparecer em S. Pedro de Moel onde costumava passar uns dias de férias com os amigos. No entanto, um arraial de Verão de última hora tinha-o impedido de aparecer por lá, além de que ele sempre pensou que era um convite de cortesia, amizade e mera circunstância.

- Olha lá, disse. Que estás a pensar fazer o resto da noite? Vais para a discoteca?
- Não pensei em nada de especial. É como tu sabes: “Carpe Diem”. Apesar dos velhos gostarem pouco que a gente se separe quando isto é a doer, como vai ser amanhã. Mas porquê? Tinhas alguma sugestão?
- Como vens cá poucas vezes e para barulho já me basta o resto do ano, estava a pensar em ir-te mostrar uns sítios que não deves conhecer.
-E porque não? Só tenho de estar para o almoço amanhã ou, no máximo, depois disso, para o “Peddy-paper”…
- Estava a pensar levar-te a Alfama, a um barzinho do tipo que tu gostas. Calmo, com música ao vivo, uns fadunchos. Aliás, hoje até acho que está lá o Mário a cantar. E mais algum que tu também deves conhecer…
- Boa. Já não vejo esse tipo há séculos. Além do mais também estou com pouca paciência para “Discos”. Quem vai? Levas a Tita contigo?
- Nops. Ela está à espera do namorado que hoje tinha um jantar de família. Estava mesmo a pensar em irmos só os dois. Além do mais até pode ser difícil arranjar mesa, logo se verá. Mas se quiseres trazer alguém… depois voltamos a vir ter com o pessoal.
Ele notou alguma hesitação na voz dela.
- Sabes que o meu bolinhas só dá para quatro.
- Não. Claro que não. Então vamos só os dois.
Surpreendido, ele tentou uma saída airosa e recriminou-se intimamente uma vez mais pela sua costumeira falta de tacto que tão mau resultado costumava dar.
- E tu achas que eu conseguia desviar alguém para ir ouvir fados? E ainda mais agora que anda tudo a tentar emparelhar? – disse, soltando uma gargalhada forçada, - só eu é que aprecio essas coisas mesmo nestas ocasiões. O que os outros querem é farra e prego a fundo. Queres ir já?
- É melhor. Aquilo não fecha tarde. Acaba a tua cerveja enquanto vou avisar a minha prima.
E desapareceu no meio da amálgama de capas negras, violas e bandolins. Bom, reparando melhor, também havia trajes azuis-escuros e cor de vinho. E um tipo até tinha um saxofone às costas. Esta gente nunca mais aprende, pensou com os seus botões, torcendo o nariz.
Lúcia estava de volta.
- Vamos? Está tudo resolvido.
- Como queiras. Já disse ao “Botas” que me encontro com eles mais tarde. Levamos uma “bejeca” para o caminho?
- Eu não posso. Sabes que vou conduzir.
Saíram do pavilhão, ela à frente, procurando orientar-se para localizar o velho “Honda”, velho companheiro de viagem que tantas coisa havia já partilhado com ela. Ele olhou-a por trás de alto a baixo, pela primeira vez de uma maneira diferente. Cabelos castanho claro impecavelmente cortados pouco abaixo dos ombros e a capa às costas onde sobressaíam apenas os emblemas da cidade, da faculdade e da associação académica.

Ele estava surpreendido pelo convite para aquele programa alternativo. Sem que nada para ele o fizesse prever, iria ser a primeira vez que estavam sozinhos.
Ela sentou-se ao volante e abriu-lhe a porta do pendura. Enquanto ele procurava acomodar a capa e a viola no acanhado banco de trás do automóvel reparou que ela se ajeitava para conduzir, fazendo subir a saia travada até meio da coxa que não pode deixar de fixar. Ela surpreendeu-o nesse momento e ele sentiu-se corar, vendo que a ela acontecia exactamente o mesmo. Nenhum deles fez qualquer comentário e ele procurou disfarçar afundando-se no assento e procurando sintonizar a rádio. Ela arrancou sem dizer qualquer outra palavra mas a ele pareceu-lhe ter feito sem querer uma espécie de registo fotográfico do rosto dela. Olhos castanhos amendoados bem enquadrados por sobrancelhas cuidadas e longas pestanas, nariz perfeito e um pouco arrebitado, boca carnuda e bem definida cujos cantos virados para cima pareciam sorrir permanentemente.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Amores de Estudante (II)

Afinal, andava nesta vida desde o segundo ano da faculdade, ou seja, mais ou menos há outros tantos.
Tinha passado a sua época de caloiro, não sem dificuldades. A Tuna estava na sua fase mais esplendorosa de sempre e os mais velhos não tinham qualquer motivo para facilitar a vida aos novatos. E era sabido que a praxe lá praticada era uma das mais rigorosas. Mas a vontade e disciplina pessoal tudo haviam feito superar. E como orgulhoso veterano, embora recente, já podia, de alguma forma, evidenciar-se. Ainda mais porque tendo uma voz que até nem era desengraçada, tinha sido escolhido para solista da nova música do “Letras” que já tinha cantado no concurso na véspera.

E foi no final que ela o abordou discretamente, num falso casual.
- Estiveste bem. O teu colega tem mesmo jeito para fazer coisas daquelas! – disse.
Encolheu os ombros, embora assentindo na observação. Estava pouco surpreendido por a reencontrar. Afinal, já a conhecia desde o seu ano de caloiro quando ela lhe desenrascou uns comprimidos para uma arreliadora dor de dentes sem lhe mostrar o costumado desprezo pela sua condição. Não que a Tuna fizesse os caloiros usar qualquer daqueles trajes apalhaçados e ridículos de que outros tanto pareciam gostar. A capa e batina é que era o traje apropriado para todos. Ainda assim era fácil distinguir caloiros e veteranos pelo porte, cortesia e saber estar que só os anos e a experiência traziam consigo.
Desde aí, várias vezes se haviam cruzado pois ela parecia fazer questão de estar presente em muitas ocasiões, especialmente nos eventos de maior fama, e ele tinha-se apercebido que ela, apesar de não pertencer a nenhum grupo feminino ou misto, se mantinha bem informada quanto a modas e novidades. Lembrava-se, em especial, dum fim de tarde de Maio, em Coimbra, onde sentados nas docas do Mondego, cabeça com cabeça, com as pernas viradas para o rio, tinham partilhado um MP3 para ouvir um disco antigo dos Sabandeños e que ele ainda não conhecia. Sem ter percebido muito bem porquê, quando a passagem começou ainda o sol ia alto e quando terminou já a Lua espreitava do trás da torre da Universidade, o que os tinha obrigado a correr, entre risos, pela cidade até ao Gil Vicente, onde o espectáculo já deveria ter começado.

Amores de Estudante (I)

Bateu a porta de madeira velha e carcomida.
Desceu as escadas escusas e mal iluminadas deitando uma mão ao corrimão torneado como já não via há anos enquanto com a outra segurava a viola e equilibrava a capa no antebraço. Não sabia as horas, se era tarde ou cedo. Afinal, a porra do telemóvel tinha ficado sem bateria havia horas. Por fim, viu-se num átrio de mosaicos de xadrez que já tinha sido pretos e brancos no mesmo mau estado do resto do prédio. Abriu o trinco da porta de cujo topo se escapavam uns raios de luz filtrada que se projectavam no chão no chão lembrando os cinemas antigos.

Ao abrir a porta esperava-o uma claridade enevoada e a calçada portuguesa duma ladeira íngreme. Saiu para a rua e puxou o batente atrás de si. Apercebia-se agora que o Sol, já alto, procurava romper aquela bruma. Procurou instintivamente nos bolsos interiores da batina e, antes de mais, entre as palhetas, cartões da Tuna e credencial do Festival, lá conseguiu encontrar os óculos escuros com que se apressou a esconder os olhos e as olheiras que decerto tinha. Ainda se preocupou em endireitar a gravata e passar as mãos pelos cabelos encaracolados, preparando-se para as normais interpelações das pessoas enquanto não conseguisse reentrar no clã dos seus iguais.
Olhando para ambos os lados, pensou que sempre seria mais fácil descer que subir, até porque o corpo ainda não estava a responder aos excessos da noite anterior. Sabia apenas que os seus estariam lá para os lados do Campo Grande ou, pelo menos, seria lá que todos se voltariam a reunir.
Com a “banza” às costas lá começou a descer a ladeira olhando distraidamente a calçada feita em cubos calcários que de tão gastos e pisados estavam escorregadios. Também estavam molhados, pelo que deduziu que o fim da noite teria sido regado por uma bênção do céu naquele fim de Verão tão seco como nunca. O tinto devia ser bom neste ano, pensou. Até o seu tio lá do Douro o tinha convidado já, bem como a toda a Tuna, como era já costume, não só para a vindima e pisa mas também para a abertura do primeiro pipinho.

Estava nisto quando rompeu o sol e ele levantou instantaneamente os olhos, vendo então o Tejo ao fundo a brilhar num cenário daqueles quadros da Maluda que sempre lhe agradaram por tão geométricos e em que tudo parecia estar no seu lugar, mas com uma luz que jamais pintor algum seria capaz de reproduzir. Era certamente aquela “luz de Lisboa” que a Estudantina cantava. E a mesma luz contada nos velhos discos de fados e marchas que o pai tão ciosamente guardava lá em casa. Cruzou-se com um pequeno grupo de velhotas que estariam de regresso da visita ao velho mercado e que depois de lhe exigirem um fadinho, lhe indicaram o caminho do Terreiro do Paço e lhe encheram os bolsos de cerejas. Seguiu caminho trincando duas e não pode deixar de sorrir. De repente, toda a noite anterior lhe passou à frente como um filme. Ou melhor, como um sonho.
Nota de Abertura:

Ficção sobre tunos e Tunas.
Onde as personagens são mesmo ficção e as personalidades, sítios e entidades podem ser reais, mas servindo apenas de cenário.
Qualquer semelhança com a realidade será pois mera aparência.
Contos, parábolas e metáforas nas primeiras pessoas.
Divirtam-se, como eu espero divertir-me com isto.

O Autor