quarta-feira, 10 de outubro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (VIII)


(VIII)
Os três dias de caminho correram como num sonho brumoso. Entre os almocreves tudo fez por passar despercebido, viajando e comendo calado, dormindo no canto mais esconso onde ninguém desse por ele.
Umas léguas depois de Penacova, e após longa e custosa subida, lá conseguiu lobrigar o seu destino transitório de Lorvão. Ficou impressionado pela grandiosidade do Mosteiro, pertença da Ordem de Cister desde os tempos do seu avô. À porta esperava um cortejo de freiras encabeçadas pela madre superiora e que era nem mais nem menos que Branca de Portugal, filha de el-rei, mas que já nem respondia por tal nome há vários anos, desde que se havia despedido da vida mundana.
Depois de ajudar a entregar a mercadoria ali destinada, composta sobretudo por lã, mel e alguns alqueires de milho, levaram-no à presença da Abadessa que o olhou de alto a baixo, apreciando a sua compleição e tez tisnada pelo sol, por trás de uns olhos muito azuis.
- Sei quem és e ao que vens. Prepara-te para uma vida diferente de trabalho e sacrifício. Tens de respeitar as matinas, fazer o que te mandarem sem qualquer réplica. Dentro de muros todos estão acima de ti. Nunca o esqueças. Claro que ficarás na ala dos criados e servos. Que respeitarás todos e em especial as damas e monjas a quem só poderás dirigir palavra se antes elas a ti se dirigirem. E ficas a saber que respondes directamente ao Albano, o responsável por toda a serventia. Agora vai...
O seu ar triste e desanimado parecia escurecer ainda mais aquele fim da tarde. Só muito depois e já na sua enxerga pareceu lembrar-se que depois daquele discurso que mais soou a sermão, lhe parecia ter ouvido uns risinhos abafados vindos das noviças do fim da ala que a Abadessa comandava.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (VII)



(VII)
Toda esta desgraça havia acontecido na segunda metade de 1276. Mesmo a protecção do seu padrinho, o Abade, talvez não fosse suficiente para o livrar da ira dos nobres das redondezas. Muito a contra gosto e depois de muita conversa e água benta, pai e padrinho lá o conseguiram convencer a entrar para um mosteiro de Cister como noviço. Alegaram que a Ordem não era das mais rigorosas, que a vida de clérigo era melhor suportada que a do comum da plebe. Que comiam e bebiam bem. Que o trabalho e oração não eram tão pesados como o trabalho de camponês ou ferreiro e tinha muito menos risco do que o de militar, ainda que cavaleiro menor.
Agachado na sua cela sem luz natural, Jaca maldisse diariamente nos meses seguintes a sua vida pedindo a tudo e todos que o seu pesadelo acabasse.
Mas o milagre nunca aconteceu.
Pelo contrário, foi-se resignando, apesar de sonhar com as mulheres, a música e o vinho todas as noites. E depois da resignação veio até o entusiasmo que os seus vinte e poucos anos ainda lhe permitiam, ajudado pela água-pé com que os outros frades o procuravam consolar.
É que pelo reino corria o orgulho enorme de nesses tempos por Sua Santidade, o Papa, ser então português. Pedro Julião ou “Pedro Hispano” era conhecido no reino como médico, matemático e professor. Era também clérigo, como quase todos os letrados. Tinha estudado na Escola do Paço Episcopal de Lisboa e mais tarde sabia-se haver sido professor as Universidades de Paris e Siena, antes de ser nomeado, fazia poucos anos, Arcebispo de Braga. Mas a verdade é que, após um curto cardinalado na cidade italiana de Frascati, todo o reino rejubilava com o novo Papa João XXI, um honrado português. E que bom era, pensava mesmo o rei Afonso, depois de tantos anos em guerra com a Santa Sé, tendo mesmo sido excomungado, o que já havia também acontecido a seu irmão e predecessor, D. Sancho.
- Vês, dizia-lhe o seu padrinho, às vezes ainda há milagres… Quem sabe se um dia não chegas assim longe. Tu, mesmo já não sendo novo para noviço, até tens uma formação sólida e podes ir longe…
- Meu padrinho, vos agradeço essas palavras, mas a minha carne é tão fraca. Acho que nunca iria ser capaz… - lá balbuciou, voltando a ver a dúvida a assaltar-lhe a mente.
- Está decidido. Amanhã segues na caravana e esperas em Lorvão que o superior da Ordem te destine o caminho. Descansa que esta noite, depois das vésperas, escreverei uma carta a recomendar-te e a encaminhar-te. Mas tal nem era preciso porque O que está lá em cima vela por todos nós.
E Jaca, suspirando, lá se conformou com o destino que lhe parecia estar já traçado. E que não era o que ele sempre desejara no seu íntimo nem nunca tinha sequer imaginado.