domingo, 30 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (VI)


(VI)
Certa vez, alçando mais o pé do que a perna deixava, perdeu-se de amores com a filha mais nova da Casa de Ribacôa, a donzela Gertrudes, nova, formosa e loira, que ainda quase não tinha idade para aprender a fiar a sua roca. Mesmo os avisos feitos pelos serviçais da casa e que chegaram aos ouvidos de seu pai por ordem do titular nenhum efeito tiveram.
É que a moça, mesmo recatada, não repelia, bem pelo contrário, as sortidas nocturnas do rapaz.

E certa noite ele não resistiu a invadir o Paço trepando pelo alçado exterior da muralha numa noite sem luar, trajando de negro e apenas com a cítola às costas e a adaga na bainha do cinto. Só que foi detectado mesmo antes de chegar ao balcão da varanda da sua amada. Pelos vistos, dois criados tinham ficado de atalaia acompanhados por um tio bastardo da donzela que na casa servia como despenseiro.
Empurrado desde o cimo da muralha caiu mesmo entre os outros dois, esborrachando o instrumento na cabeça de um deles na queda. Da rápida luta que se seguiu com o despenseiro, pouco ficou a recordar. Apenas que no seu sufoco sacou da adaga e feriu gravemente o seu opositor no esterno após o que se pôs em fuga perseguido pelas tochas e pelo alarido dos cães na confusão que se gerou imediatamente a seguir.

Mesmo assim a deusa Fortuna ainda o acompanhou porque lhe perderam o rasto quando teve de nadar, atravessando o rio. Ninguém que não o tal bastardo o poderia identificar. Mas para seu infortúnio corria à boca larga que era ele que desde há tempos andava a rondar o Paço. E nem era certo que o outro houvesse morrido, o que se veio a confirmar.

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (V)


(V)
O jovem Jaca quando se conseguiu escapulir das tarefas lá de casa tudo fazia para acompanhar os estudantes, fosse noite ou dia. Mesmo quando estes lho recusavam, ele seguia-os pela calada das sombras.

Com os seus quinze anos feitos já conhecia uma série de cantigas, tendo percebido que a maioria delas falava de vinho. Algumas outras eram modificações arrevesadas das Santas Orações que quase sempre gozavam os Frades e a vida que levavam. Outras ainda, mais melosas, falavam ao coração das mulheres. Mas estas eram contadas na língua corrente dos dois lados da raia, segundo lhe explicaram, para que as Donas as compreendessem melhor, fossem elas do povo, da nobreza ou mesmo algumas monjas mais ligadas a questões mais terrenas.
Aprendeu também grande quantidade de galanteios e outras formosas falas que eles soltavam sempre que passavam por moçoila sozinha a caminho da fonte ou do forno ou de gamela à cabeça, vinda do lameiro.
Aprendeu truques de cartas e dados e as maneiras de enganar o estalajadeiro nos “pintos” de vinho a pagar.
Aprendeu a usar a adaga, a espada e a moca para se defender dos mais exaltados, enganados ou avinhados.
E aprendeu, claro, a tanger instrumentos musicais, da cítola à “vihuela” e ao pandeiro.

Na flor da sua juventude conheceu, biblicamente falando, todas as que pode e com uns engodos cada vez mais elaborados.
E, consequência de tudo isto, lá começou o desvario da sua vida...

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (IV)



(IV)

Essa rapaziada dizia ir e vir da velha cidade de Salamanca, a três dias de caminho se a pileca fosse boa. Segundo contavam, lá existia, desde os idos de 1218, uma coisa fundada pelo velho Rei de Leão e Castela a que chamaram os Estudos Gerais, onde cursavam Leis e Cânones, que é como quem diz, estudavam as Ordenações e aprendiam para clérigos, na sua maior parte. Parece que uns anos antes esses estudos se faziam mais a Norte numa outra cidade chamada Palência. Mas alguma coisa não havia corrido bem e então o monarca havido situado esse centro de estudo na mais pacata cidade de Salamanca.

Aparentemente passavam lá três estações do ano frequentando as cátedras que estavam espalhadas por Colégios Maiores e Menores e fazendo de tudo um pouco para sobreviver, sobretudo no Inverno frio e gelado da velha Helmântica. Até porque o soldo que levavam de casa cedo se esgotava com o vinho, a comida e as mulheres.

Mas os que por ali paravam pareciam saber bem mais da vida mundana do que de leis e da vida do Nosso Senhor Jesus Cristo. Puxavam das adagas e das espadas quase sem motivo, pareciam concursar quanto ao que mais se conseguia empanturrar com os cabritos da estalagem ou quanto a qual deles dormia até mais tarde ou mais alto ressonava naquelas suas curtas paragens. Mas, melhor do que isso, e o que Jaca e seu pai mais apreciavam era a sua capacidade para tanger instrumentos, bailar e cantar até cair para o lado. E quando o faziam o sucesso era tal que parecia aparecer sempre alguém para pagar as contas da hospedagem.
Também os pais e irmãos das moças casadoiras aprenderam nessa época do ano a vigiar mais apertadamente as suas catraias porque eles pareciam saber tudo sobre como as levar na conversa. Além da língua popular falavam também o latim como os curas e também uma outra versão macarrónica daquele languajar que só eles compreendiam.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (III)



(III)
Daí para a frente olhava as mulheres com uma gula cada vez maior, acabando os seus desejos – e receios, ao mesmo tempo – mais ou menos três anos mais tarde por se concretizarem três anos mais tarde por ocasião dum recado que fizera a mando de sua mãe a casa da viúva Sancha mulher risonha, atrevida e ainda nova – não teria ainda tinta anos –, cujo marido morrera havia cinco anos numa sortida além Tejo contra os infiéis por ordem de El-Rei.
Nesse dia, quando ela lhe pediu para a ajudar a mudar uma arca para o seu recesso e depois com ar maroto o empurrou para dentro do seu catre, caindo-lhe em cima com a longa saia já segura e levantada pela cintura, ele apenas se deixou ir, suando e resfolegando enquanto o corpo lhe permitiu, durante toda a tarde, e que lhe mereceu da mãe um reparo pela tardança a que apenas conseguiu balbuciar um “vi um pássaro raro, minha mãe, e andei atrás dele a ver se o agarrava. Da maneira que cantava quis trazê-lo para meter na gaiola de Vossa Senhoria”.
Nos anos seguintes, e à medida que melhor aprendia as artes do namoro, correu todas as moçoilas que conseguiu, tendo ganho fama nas redondezas pelas suas façanhas e atributos e um par de corridas desabridas quando algum pai ou irmão o tentava surpreender com alguma das fêmeas da casa.
Diga-se que, entretanto, ele se havia tornado um belo rapaz, esperto e especialmente dado aos jogos florais e de peleja em que melhores professores não poderia ter tido, como se verá a seguir.

O pai de Jaca, Rodrigo, apesar de homem rústico e agarrado á terra, ao ofício e à casa, sempre tivera também uma grande inclinação para a taverna, para o jogo, e para bailar e tocar. Tinha até em casa uma cítara que aprendera a arranhar com um mouro, Ibn Al Bakr, que era um renegado e tantas vezes servia de guia nas expedições guerreiras para Sul e ali pela terra assentava nos intervalos.

Nas investidas que fazia à estalagem, onde ficava a taverna, tomara conhecimento com uns viajantes sazonais que por ali costumavam passar no princípio e no fim do Verão. Gente nova, uns mais ricos que outros, mas que viajavam em conjunto, uns mais afoitos e para sul, contornando a Serra da Estrela pelo Meridião, rumo a Santarém ou Lisboa, outros mais cautelosos, optando antes pelo lado Norte, mais seguro, rumo a Veseo, Coimbra, Aveiro, Porto ou Guimarães. Nem todos portugueses pois às vezes via uns magotes de castelhanos, leoneses e galegos que com eles se misturavam e pareciam vir passar o estio nos mais frescos ventos do Reino de Portugal.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (II)



(II)
O pai de Jaca era pois um homem do povo, mas um homem honrado. Tinha até sido Louvado em querelas e Prócere na outorga de dois forais, a mando um de D. Sancho II e outro já do próprio Rei D. Afonso III. Enfim, coroando os seus bons serviços prestados havia sido elevado à condição de cavaleiro menor – “Infanção”, como então se dizia.
A mãe, D. Brites, mulher trigueira e fértil tinha já parido cinco filhos antes do nascimento dele, dos quais apenas uma menina mais frágil não tinha sobrevivido ao primeiro ano de vida pela infelicidade de ter comido umas papas de milho em cuja farinha uns ratos se haviam conseguido espojar apesar de guardada na masseira. D. Brites governava a casa impondo forte figura matriarcal onde nem o pai se atrevia a interferir, acompanhada por algumas raparigas das vizinhanças que na casa faziam algumas jornas ou ali se recolhiam quando pais ou maridos partiam para a anúduva ou para a hoste.

Desde pequeno sempre se habituara à revoada de saias que a mãe comandava e ao cacarejar delas quando estavam juntas e na conversa, aos risos e arrulhos quando algum moço varão rondava o lagar, aos cantares agudos e sonoros nas mondas e desfolhadas, quase estranhando o silêncio quando elas se recolhiam.
Aos dez anos começou a olhá-las de maneira diferente, prestando cada vez mais atenção aos seus colos, imaginado o que iria por baixo daqueles camiseiros de linho branco que elas escondiam sob o colete. Daí a ir espreitá-las a banharem-se nuas no rio por trás da Fraga da Moura foi um passo. E só começou a perceber porque se chamava assim a Fonte dos Amores quando num certo fim de tarde de Primavera, descansando de uma ida aos ninhos, ouviu uns risos baixinhos vindos do chafariz. Espreitando entre as urzes e giestas espantou-se ao reconhecer a Teresa, filha casadoira de um vizinho e que passava o tempo lá me casa, de jarro debaixo do braço em conversa sussurrada com Soeiro Mendes, sobrinho do Senhor do Castelo do Sabugal. Mais espantado ficou quando a viu fugir rindo para o prado que ficava mesmo por baixo do seu esconderijo e ele a ter seguido e apanhado facilmente rolando pela erva agarrados até um canto encostado a um muro de pedras soltas onde as papoilas pareciam fazer uma colcha de brocado carmim.
O que presenciou a seguir não mais lhe saiu da memória. Mesmo estendido ao comprido no chão com a caruma a espetar-se no burel das calças e a picá-lo, não ousou mexer-se enquanto os outros por ali estiveram. Mais enfadado ficou ao sentir-se ruborizar pingando suor das suas guedelhas, mas sobretudo por sentir entumecer as suas partes baixas contra o chão, o que cada vez mais lhe acontecia, mas apenas era costume ao acordar, especialmente quando o tempo aquecia.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

FREI JACA RODRIGUES – O Último Goliardo (I)


Jaca Rodrigues nasceu na vila de Quadrazais, lá pelo ano de 1254, e que os pais nunca esqueceram por saberem estar a decorrer as cortes de Leiria para onde tinham partido um par de homens bons da comarca, o Governador da comarca de Sabugal, nobre de baixa estirpe e o superior do convento primordial, muito mais tarde chamado de Sacaparte, de origem templária, lá para os lados de Alfaiates, amigo e protector da sua família, que a sua mãe nunca deixou de lamentar não ter podido ser o seu padrinho e o ter benzido com os Santos Óleos no Baptismo.
Era filho de Rodrigo Jaca, o ferreiro da aldeia, homem de trabalho e dedicação à família e à Pátria mesmo nas mais difíceis condições. Na verdade, a família tinha vindo para aquelas terras seguindo a conquista feita por El-Rei D. Afonso, o Fundador, e para povoação daquela zona da raia. O bisavô do seu pai, Pêro Rodrigues, mais não era que um servo da gleba em que o lugar-tenente do monarca havia reparado pela sua força e destreza e tomara a seu serviço. E que não hesitara em o acompanhar nas campanhas que o Rei ordenara ao sentir o Condado que o seu pai lhe deixara demasiado apertado para as suas ambições. Naqueles anos, a valentia do moço tinha sido tal que o dito nobre o tomara sob a sua protecção, o tinha tornado um homem livre, lhe tinha dado uma tença e um pequeno casal mesmo acabado de tomar aos Mouros.
Acabou por casar com uma rija moça judia que apesar de ter nascido Sara acabou por casar pela Santa Igreja com o nome mais cristão de Leonor e tomar aquelas terras como suas nem que para isso a terra lhe tivesse de comer o sangue.
E nada fácil foi a vida de Pêro Rodrigues e dos seus sucessores. Afinal foram muitos os anos sem um real e verdadeiro descanso. Se por um lado tinham de atentar nas investidas da Mourama, por outro não podiam deixar de olhar para o lado, de onde muitas vezes vinham os castelhanos, os salteadores nos primeiros tempos e depois os soldados do rei.
E o juramento do patriarca sempre foi mantido pelos filhos e pelos filhos dos filhos. Mesmo quando desaparecido o Fundador e os castelhanos tomaram de novos aqueles vales, serranias e florestas, eles se ali mantiveram aparentando fidelidade ao alcaide de ocasião mas nunca esquecendo a fidelidade à dinastia Bolonhesa do Reino de Portugal. E como eles tantos outros. Se não, como compreender que naquele ano de 1254 os homens do Sabugal se apresentassem perante El-Rei D. Afonso III em Leiria, e não perante o velho Rei Afonso X de Castela e Leão, O Sábio, em Toledo ou em Cáceres?

terça-feira, 4 de setembro de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (VI)



“O Traçadinhas” (VI)

Toda a caloirada ficou a assistir ao primeiro ensaio do ano. Carlos reparou que os tunos pareciam estar especialmente felizes por se reencontrarem depois das férias. Apesar de alguns erros causados pela “ferrugem”, fruto do Verão, os ensaios foram bem animados e o gosto aparente em que toda a gente punha no que estava a fazer cativaram-no definitivamente. Havia de entrar. Havia de conseguir passar as provas todas de que tinham falado. Faria o que fosse necessário para conseguir. Estava certo que já tinha tido coisas piores pela frente.

No final entregaram um instrumento a cada caloiro e obrigaram-nos a tocar uma coisa todos juntos. Mas eles, caloiros, é que tinham de decidir. Entreolharam-se todos e não bastando os instrumentos que queimavam as mãos de cada um, não havia maneira de se porem de acordo. Perante a risota geral lá acabaram por arranhar os “passarinhos a bailar...” que ainda foram obrigados a completar com a respectiva coreografia.
Acabou tudo à gargalhada e saíram em direcção ao bar pois vários estavam já fartos de protestar com sede e com saudade de umas “bejecas”, não sem que no caminho tivesse havido uma distribuição abundante de “calduços” e gozo com todos os novatos.

- Mas olha lá. Tu estavas mesmo com pressa de tirar a naftalina à capa, não era, caloiro?
- Eu julgava que toda a gente já viria assim. Eu via o pessoal sempre trajado na televisão.
- Pois. Vocês lá na serra não deviam ter muito mais para fazer. Ainda deves ser dos que acreditam em tudo o que vêem. – Gozou um outro.
- Então, mas assim é que é bonito. Se não usar o fato enquanto cá estiver quando é que o vou fazer?
- És muito arrebitado a responder. Vê lá se não te queimas... ou se nenhuma trupe te apanha quando estiveres fora da tuna. – Observou um terceiro.
- Trupe? O que é isso? São aqueles que se juntam à noite com as capas todas traçadinhas?
Mais uma gargalhada geral.
- Ora aí está, sem tirar nem pôr. – Sentenciou o da voz do trovão que entretanto se tinha juntado ao grupo. – Vens da serra, és atrevido e teimoso, e arreias logo o traje como um doutor sem pensar no que dizes nem no que fazes e não tens medo. Se o Aquilino ainda andasse por aqui punha-te logo nome. Como não está ponho-to eu e dele já não te livras. Enquanto estiveres aqui dentro nunca vais conhecer outro. Daqui para diante, e que Deus te abençoe, passas a ser o Traçadinhas!


Fim (... de “estória”)

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

"Os Estéreo Tipos" (1) (V)



“O Traçadinhas” (V)


Quando acabaram as exposições dos veteranos, durante as quais ele estranhou a falta de atenção de alguns dos novos que o acompanhavam, que pareciam não se interessar pelas regras que estavam a ser expostas, que para ele constituíam novidade e um mundo novo que desconhecia, mandaram-nos ir junto de um acordeonista que os mandou cantar notas musicais das mais graves às mais agudas. Segundo percebeu estavam a tentar catalogar cada um deles quanto ao timbre. Pelo que pareceu, a maioria seriam barítonos, alguns, poucos, baixos e ainda menos, tenores. Uns cantavam melhor que outros. Alguns mesmo, pouco ou nada cantavam. Mas todos foram tratados da mesma maneira, tendo sido dito a cada um para não se esquecer dos naipes de vozes a que ficariam a pertencer.
- Agora precisamos de saber que instrumentos vocês tocam, se é que tocam algum! – Disse o presidente.
Começaram por uma das pontas da fila de cadeiras onde estavam sentados. A maioria dizia tocar um pouco de viola, um disse só perceber de percussões, outro de acordeão, outros dois bandolim e cavaquinho. Dois disseram mesmo não saber tocar qualquer instrumento.
Quando chegou a sua vez, disse, sem pensar:
- Eu toco clarinete.
- OUTRA VEZ? – Disse tonitruante atrás de si a voz que ele já conhecia do primeiro dia. – Não te disse já que isso para aqui não serve?

Carlos ficou meio acabrunhado e sem compreender a embirração com o clarinete. Afinal, na tuna lá da terra não era assim. Cada um tocava o que sabia ou lá aprendia. Era verdade que o mestre costumava refilar baixinho sempre que alguém novo se apresentava e só tocava sopros, mas esses lá iam acabando por ficar. E ele também ouvia a conversa entre os velhotes da tuna preocupados por cada vez haver menos gente interessada na tuna e os novos preferirem ir só aos bailes e discotecas ou então optarem por tocar em conjuntos. Mas nunca ninguém tinha ficado de fora pelo que tocava. Recordava-se até de velhas fotografias, algumas com dezenas de anos em que se viam os tunos com instrumentos que agora já nem usavam. E as pautas do mestre até tinham os arranjos para os metais. Em tempos tinham tido inclusive um trompete, embora esse só tocasse em algumas marchas e nos bailes de arraial em que não havia amplificação. Mas daí a darem a entender que ali naquela tuna não se tocavam desses instrumentos ainda ia uma distância muito grande.
- Sabes, pá. Nós já temos conhecimento que tu tocas lá na tuna da tua terra. Mas aqui as coisas são um pouco diferentes. – Dirigiu-se-lhe com compreensão o Presidente. – As tunas académicas são um pouco diferentes não só no repertório, que não comporta metais mas também nos princípios e razões da utilização de cada instrumento. E mesmo os sopros só com flautas de Bisel. É que aqui gostamos de respeitar aquilo que alguns chamam a tradição das tunas académicas. Se fores aos dicionários vais ver que diz que elas são agrupamentos de estudantes que tocam essencial e tradicionalmente cordofones.
E acrescentou que além destes, por questões rítmicas, também era costume ter pandeiretas, tendo-lhe apontado um exemplar pousado em cima de uma mesa, esse, que era diferente dos pandeiros que ele conhecia quer das Bandas quer de alguns ranchos, apesar de umas serem com aro em metal e as outras em madeira. Mas nenhuma delas tinha pele. Para isso haviam os bombos e os adufes em algumas regiões.

- De palheta, - acrescentou o Presidente – só mesmo o acordeão que começou a ser usado quando mais tarde também chegou aos ranchos folclóricos. E chegou porque era mesmo preciso, embora tenha sido difícil. Não só era muito caro para o povo comum como haviam poucos que o aprendessem a tocar. Mas como os arraiais eram cada vez maiores e era precisa projecção de som, lá os aceitaram. O mesmo aconteceu nas tunas universitárias. Agora os sopros é que não – reafirmou – Se pensares bem, como a estrutura musical das músicas da tuna está melodicamente assente nos arranjos de bandolins e bandolas, ter trompetes, clarinetes ou trombones iria esconder os trabalhos de cordas. Já para não falar na dificuldade que toda a gente teria de se ouvir uns aos outros. E a perturbação que isso iria causar nas vozes, já pensaste?

Carlos percebeu onde ele queria chegar. Aquilo parecia ser lógico. E, aparentemente, ele sabia do que estava a falar. Além do mais na tuna lá da terra, ultimamente, tocavam dez, quinze no máximo e quando todos estavam presentes. Ali, na sala onde agora se encontrava estariam mais de trinta ou quarenta, segundo agora se apercebia. E assentiu com a cabeça.
- Se quiserem posso tentar as violas ou os bandolins.
Levando uma palmada nas costas que não soube de onde vinha, alguém disse:
- Assim é que se fala, ó caloiro!