Bateu a porta de madeira velha e carcomida.
Desceu as escadas escusas e mal iluminadas deitando uma mão ao corrimão torneado como já não via há anos enquanto com a outra segurava a viola e equilibrava a capa no antebraço. Não sabia as horas, se era tarde ou cedo. Afinal, a porra do telemóvel tinha ficado sem bateria havia horas. Por fim, viu-se num átrio de mosaicos de xadrez que já tinha sido pretos e brancos no mesmo mau estado do resto do prédio. Abriu o trinco da porta de cujo topo se escapavam uns raios de luz filtrada que se projectavam no chão no chão lembrando os cinemas antigos.
Ao abrir a porta esperava-o uma claridade enevoada e a calçada portuguesa duma ladeira íngreme. Saiu para a rua e puxou o batente atrás de si. Apercebia-se agora que o Sol, já alto, procurava romper aquela bruma. Procurou instintivamente nos bolsos interiores da batina e, antes de mais, entre as palhetas, cartões da Tuna e credencial do Festival, lá conseguiu encontrar os óculos escuros com que se apressou a esconder os olhos e as olheiras que decerto tinha. Ainda se preocupou em endireitar a gravata e passar as mãos pelos cabelos encaracolados, preparando-se para as normais interpelações das pessoas enquanto não conseguisse reentrar no clã dos seus iguais.
Olhando para ambos os lados, pensou que sempre seria mais fácil descer que subir, até porque o corpo ainda não estava a responder aos excessos da noite anterior. Sabia apenas que os seus estariam lá para os lados do Campo Grande ou, pelo menos, seria lá que todos se voltariam a reunir.
Com a “banza” às costas lá começou a descer a ladeira olhando distraidamente a calçada feita em cubos calcários que de tão gastos e pisados estavam escorregadios. Também estavam molhados, pelo que deduziu que o fim da noite teria sido regado por uma bênção do céu naquele fim de Verão tão seco como nunca. O tinto devia ser bom neste ano, pensou. Até o seu tio lá do Douro o tinha convidado já, bem como a toda a Tuna, como era já costume, não só para a vindima e pisa mas também para a abertura do primeiro pipinho.
Estava nisto quando rompeu o sol e ele levantou instantaneamente os olhos, vendo então o Tejo ao fundo a brilhar num cenário daqueles quadros da Maluda que sempre lhe agradaram por tão geométricos e em que tudo parecia estar no seu lugar, mas com uma luz que jamais pintor algum seria capaz de reproduzir. Era certamente aquela “luz de Lisboa” que a Estudantina cantava. E a mesma luz contada nos velhos discos de fados e marchas que o pai tão ciosamente guardava lá em casa. Cruzou-se com um pequeno grupo de velhotas que estariam de regresso da visita ao velho mercado e que depois de lhe exigirem um fadinho, lhe indicaram o caminho do Terreiro do Paço e lhe encheram os bolsos de cerejas. Seguiu caminho trincando duas e não pode deixar de sorrir. De repente, toda a noite anterior lhe passou à frente como um filme. Ou melhor, como um sonho.
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